quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

OUÇA O ESPÍRITO, OUÇA O MUNDO - John Stott


INTRODUÇÃO - O ONTEM E O HOJE

As próprias expressões "o cristão contemporâneo" e "cristianismo contemporâneo" (como, por exemplo, em "Instituto de Cristianismo Contemporâneo") chocam muita gente, pois parece ser uma contradição ter¬minológica. Como pode o cristianismo ser considerado "contemporâneo"? Não se trata de uma fé antiga? Seu fundador não viveu e morreu há dois mil anos? O cristi¬anismo não seria parte de um período, uma peça de museu, uma relíquia antiga de um passado remoto, irrelevante para as mulheres e os homens modernos?
Meu propósito neste livro é tentar responder essas ques¬tões e demonstrar que esse negócio de "cristianismo con¬temporâneo" existe mesmo. Não é uma nova versão do cris¬tianismo que nós resolvemos inventar, mas, sim, um cris¬tianismo bíblico, ortodoxo, histórico e original, sensivel¬mente relacionado com o mundo moderno.
O cristianismo é histórico e contemporâneo
Vamos começar reafirmando, sem nenhum pedido de des¬culpas, que o cristianismo é uma religião histórica. É claro que toda religião pode afirmar ser até certo ponto "histórica", pois cada uma surgiu em um contexto his¬tórico específico e remonta ao seu fundador (por exemplo, Buda, Confúcio ou Maomé) e/ou a uma sucessão de líderes que contribuíram para sua formação. O cristianismo, porem, tem uma razão ainda mais forte para afirmar sua historicidade, porque ele não se baseia apenas em uma pessoa histórica, Jesus de Nazaré, mas também em certos eventos históricos que o envolveram, especialmente seu nascimento, morte e ressurreição. Além disso, o que torna histórico o judaísmo são eventos, e não pessoas. O Antigo Testamento apresenta Javé não só como "o Deus de Abraão, Isaque e Jacó", mas também como o Deus da aliança que ele fez com Abraão e renovou com Isaque e Jacó; não apenas como o Deus de Moisés, mas como o Redentor responsável pelo Êxodo, que continuou a renovar a ali¬ança ainda uma vez mais no Monte Sinai. Assim, os cristãos estão para sempre presos, de coração e alma, a estes eventos históricos e decisivos do passado. As Es¬crituras nos exortam constantemente a que os recor¬demos com gratidão. Na verdade, Deus, deliberadamente, tomou os devidos cuidados para que o seu povo se lem¬brasse com regularidade dos seus atos salvíficos. Assim como a Páscoa estava para o Êxodo, como um festival anual de celebração da salvação de Deus, assim a Ceia do Senhor está para a morte expiatória de Cristo, ca¬pacitando-nos a trazê-la regularmente à mente e a rego¬zijar-nos em seus grandes benefícios. E, pois, através da Palavra e do sacramento que o passado se faz presente uma vez mais.
As origens históricas do cristianismo são uma grande bênção. Elas nos provêem um alicerce sólido. Nossa fé não se baseia em lendas, contos de fadas ou mesmo em mitos, mas, sim, em fatos reais. Estes, no entanto, também se constituem em um problema, uma vez que já faz tanto tempo que eles ocorreram. A enorme lacuna entre ontem e hoje, entre o passado e o presente, o histórico e o con-temporâneo, é algo um tanto embaraçoso. A geração mais jovem nos diz que não tem interesse nenhum em história. O máximo que esta produz neles é um longo bocejo, rude e barulhento. O que nos interessa, dizem eles, é o agora, e não o passado. Eles nos fazem lembrar Huckleberry Finn, quando a viúva Douglas lhe conta pela primeira vez a história de Moisés e os juncos:
Eu estava todo suado, de tanto me esforçar para des¬cobrir tudo sobre ele; mas aos poucos ela foi deixando escapar que Moisés já havia morrido há um bom tempo; e daí eu não quis mais saber dele; afinal, não me interessa mesmo ficar me preocupando com gente morta.
Há mais de vinte anos me incomoda uma conversa que tive sobre este assunto com dois irmãos (eu a relato na íntegra no livro Eu Creio em Pregação). Eles eram estu¬dantes universitários e me disseram que haviam repudiado a fé de seus pais, na qual haviam sido criados. Agora um deles era agnóstico e o outro, ateu. Eu lhes perguntei por quê. Porventura eles já não acreditavam mais na verdade do cristianismo? Não, retrucaram, o problema não era esse. Seu dilema não era se o cristianismo era verdadeiro, mas se era relevante. E como poderia sê-lo? O cristianismo, acrescentaram, era uma religião palestina, primitiva. Ha¬via surgido em uma cultura palestina e primitiva. Portan¬to, o que teria ele a lhes oferecer — a eles, que viviam no emocionante mundo moderno das viagens espaciais, das cirurgias de transplante e da engenharia genética? Ele era irrelevante!
Esta sensação de que o cristianismo é uma coisa distante, obsoleta e irrelevante existe em todo lugar. O mundo mudou tão drasticamente desde os dias de Jesus! E con¬tinua mudando com uma rapidez ainda mais assustadora. As pessoas rejeitam o evangelho, não necessariamente por considerá-lo falso, mas porque ele já não faz mais sentido para elas. Será que a igreja conseguirá sobreviver ao desafio da modernidade? Ou passará pelo ignominioso destino do dinossauro e, igualmente incapaz de adaptar-se a um ambiente em mudança, acabará se extinguindo?
Como resposta a esta impressão comum de que o cristia¬nismo está irremediavelmente desatualizado, nós precisa¬mos reafirmar nossa fundamental convicção cristã de que Deus continua a falar através daquilo que ele já falou. Sua Palavra não é um fóssil pré-histórico, a ser exibido numa redoma de vidro, mas, sim, uma mensagem viva para o mundo de hoje. O lugar dela é no mercado e não no museu. Através de sua antiga Palavra Deus se dirige ao mundo moderno, pois, como diz o Dr. J. I. Packer, "a Bíblia é Deus pregando". Mesmo levando-se em conta as peculiaridades históricas da Bíblia e a imensa complexidade do mundo moderno, ainda assim existe uma correspondência funda¬mental entre eles, e a Palavra de Deus continua sendo uma lâmpada para os nossos pés e uma luz para os nossos caminhos.
Ao mesmo tempo, nosso dilema permanece. O evangelho pode ser "modernizado"? Será factível esperar que a igreja aplique a fé histórica ao cenário contemporâneo, a Palavra ao mundo, sem trair a primeira nem alienar o segundo? Será que o cristianismo pode conservar autêntica sua identidade e ao mesmo tempo demonstrar sua relevância, ou é preciso sacrificar um deles em detrimento do outro? Seremos obrigados a escolher entre voltar ao passado e fazer do presente um amuleto, entre recitar velhas verdades que são antiquadas e inventar novas idéias que são espú¬rias? Dentre estes dois, talvez o maior perigo seja o de que a igreja tente reformular a fé de forma a solapar sua integridade, tornando-a irreconhecível diante de seus arautos originais. Eu proponho que agora nos concentre¬mos neste problema; o resto do livro dirige-se, de diferentes maneiras, ao problema complementar da relevância. Em 1937 o acadêmico de Harvard Henry J. Cadbury pu¬blicou o seu livro O Perigo de Modernizar Jesus. Ele admitiu que o propósito — aliás, louvável — dos "modernizadores" de Jesus era "interpretá-lo em termos que pareçam reais, ou seja, termos modernos, adequados à mente moderna". O resultado, porém, sempre foi falsificá-lo, e em especial perder de vista sua característica judaica típica do primeiro século. Tal como os soldados que zom¬bavam de Jesus "rasgaram suas vestes e lhe puseram uma manta escarlate", e então, após escarnecerem dele, "tiraram-lhe o manto de púrpura e lhe puseram suas próprias roupas", assim também nós colocamos em Jesus "nossa própria roupagem" e o revestimos de "nossos próprios pensamentos".
Mesmo assim o desejo de apresentar Jesus de uma forma que apeteça a nossa própria geração é obviamente louvável. Era esta a preocupação de Bonhoeffer na prisão: "O que me preocupa incessantemente", escreveu ele, em 1944, ao seu amigo Eberhard Bethge, "é a questão de... quem é Cristo de fato para nós hoje?" Esta é, sem dúvida alguma, uma pergunta inquietante. Todavia, ao respondê-la, a tendência da igreja tem sido, em cada geração, desenvolver imagens de Cristo que se desviam do retrato pintado pelos autores do Novo Testamento.
Helmut Thielicke foi muito sincero quanto a isso. "Sempre e sempre de novo, a figura de Jesus tem sido terrivelmente amputada", escreveu ele, "a fim de adaptar-se ao gosto de cada geração".
Durante toda a história da igreja Jesus Cristo tem passado por um processo de repetida crucificação. Ele tem sido açoitado, machucado e trancafiado na prisão de in¬contáveis sistemas e filosofias. Tratado como um corpo de pensamento, ele geralmente tem sido rebaixado a sepulturas conceptuais e coberto com lápides, a fim de que não possa ressurgir e causar-nos mais problemas... Mas este é o milagre — que dessa sucessão de sepulturas conceptuais Jesus Cristo sempre e sempre ressuscita de novo!




Texto retirado do livro OUÇA O ESPÍRITO, OUÇA O MUNDO - John R. W. Stott - Editora: ABU. Preço R$ 50,00 no site http://www.livrosnarede.com/telas/produtos/product_view.aspx?id=906

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...